Trecho 6 de Cora: a experiência dos sentidos

O Trecho 6 do Caminho de Cora Coralina marca em mim a experiência do sentir. As seis horas caminhando sob o sol e sob 32 graus de temperatura afloraram em mim a paciência para dar um passo de cada vez e a convicção de que observar a mim mesma durante o percurso permitiu adaptar-me conforme. Mais trechos sombreados, mais rápida a passada. Longos trechos de exposição ao sol, passos lentos e respiração ritmada.

No decorrer do trajeto também me fui vestindo e desvestindo. Fui vestindo lenço na testa de tanto que o suor corria e embaçava meus óculos e minha vista; fui despindo roupas e a primeira coisa a sair foi a camisa com o símbolo do Caminho. Fiquei só com a camiseta branca de alça. Estou com o braço moreno e o dorso esbranquiçado, mas não havia como não sentir calor e, ficar só de camiseta, ajudou o corpo a desconcentrar-se daquele fervor que o invadia por todos os poros. O calor era tanto que também vesti toalha embebida de água no pescoço para refrescar e desvesti meia suada por uma seca para mais conforto aos pés. Era como se, de quando em quando, eu estivesse sofrendo os efeitos de onda de calor. Sofrimento medonho!

Até minha água esquentou. Também pudera com tanto sol e sem mochila coller. Parecia que eu havia colocado água para esquentar quando quero tomar chá. Não foi possível beber, até tentei, mas o que decantou foi apenas molhar a boca, minúsculos goles. Beber água àquela altura fazia o corpo ficar ainda mais quente. O que refrescou o esqueleto e os miolos, que já de fritos tinham ficado torrados, foram os respingos de água que um colega de trilha, lá de dentro de um riachinho, jogou e que caíram em mim como se fossem gotas de chuva grossa. O grupo de colegas que vinha atrás descobriu até uma bica de água (ficamos sabendo depois durante a resenha – bate-papo de final de trilha). Os colegas na dianteira pousaram numa fazenda que apoiou com água gelada. Ah, se eu tivesse sabido! Ou se tivesse tido o tino de aproximar-me da fazenda e fazer o que eles fizeram: pedir!

Não foi fácil!

Outros sentidos e a natureza como algo a ser mimetizado

Só não quero me lembrar que a experiência dos sentidos do Trecho 6 se limite a essas sensações físicas de desfalecimento e das adaptações necessárias para literalmente não morrer de calor caminhando. A alegria de nossa chegada no pátio da Igreja de São Francisco está em nossos sorrisos nessa self com Cláudia, Filomena, Ricardo e eu.

Há mais sentidos nessa trilha! 

A memória olfativa que levo dos troços de alfazema de cada lado de uma alameda de uns 350 metros, é um deles. O cheiro suave e característico junta-se à visão de inúmeras borboletas amarelas a rondar esses pés de uns 80 centímetros de altura. As flores arroxeadas na ponta dos penachos são tão cheirosas que passei o nariz por muitas. Toquei nelas para que exalassem cheiro de alfazema, um de meus sabonetes preferíveis. Não só meus olhos se encheram de amarelo das tantas borboletas, como também se encheram de contemplação ao observar a sinuosidade que se forma no horizonte por conta das linhas e das curvas das pequenas montanhas que se avistam ao longo do caminho (foto de Pedro Paulo, trilheiro).

O Trecho 6 é bonito! Um sobe e desce constante de 25km, e as peculiaridades desse mundo rural de médio porte. As fazendas com vacas leiteiras brancas, malhadas e marrons-caramelo a olharem e observarem complacentes a gente passando na estrada. Ao lado delas, o touro reprodutor e sua imponência e porte grandioso. As porteiras com avisos de – por favor manter fechada a porteira. E o transporte de leite em caminhonetes, motos e até charrete puxada por cavalo e dirigida por um peão.

Esse cenário tem cheiro de mato que Cora Coralina tanto aborda em seus poemas. Tem cheiro de gente cuidando da terra e cuidando da vida, como o casal com o filho pequeno sob um guarda-chuva cor de rosa sentados na relva de sua fazendinha, contemplando o lago e falando ao celular com o amigo. Era um convite para vir pescar mais tarde que o lago estava cheio e a pescaria prometia.

 

Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que vão pelas estradas.
Sou a espiga e o grão que retornam à terra.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando, é o arado milenário que sulca.
Meus versos têm relances de enxada, gume de foice e peso de machado.
Cheiro de currais e gosto de terra.

Cora Coralina

(um dos poemas ao longo do Trecho 6 do Caminho de Cora)

Esse lado a lado com a natureza, também me trouxe os sentidos do conhecer e as conversas, ao longo do caminho, tocaram minha necessidade de ajudar a transformar o modo como vivemos em sociedade, principalmente nosso modo urbano, para enfrentar com decência e paz a emergência climática já em curso. Durante o trajeto, aprendi sobre o documentário Biocêntricos com a trilheira Claudia Simone. Também compartilhei as novas sobre o documentário A Fábrica de Pandemias, da premiada jornalista francesa Marie-Monique Robin.

A natureza como ambiente e suas soluções a serem mimetizadas e os serviços que presta às espécies humanas e não-humanas vão ficando como mote para outra postagem. Afinal, esses foram os tópicos que rondaram nossas conversas por vários quilômetros: o sentir definitivo que somos parte do ecossistema e não um elemento exterior ao ambiente!

Poesia e Resistência: Caminho de Cora Coralina

– Senhor! … Como a roça cheira bem!

Cora Coralina, Poema do Milho

Completei três dos 13 trechos do Caminho de Cora Coralina, uma travessia de longo curso de 300 quilômetros de extensão que corta cidades histórias de Goiás (GO). De tanto em tanto, quando a agenda permite, lá estou eu caminhando com o grupo Calango & Caliandras por estradas vicinais e por caminhos de fazendas no interior das propriedades privadas conveniadas com a secretaria de Turismo, por intermédio da Associação Caminho de Cora Coralina (ACCC).

Desde que decidi pelo desafio, em 2022, acoplei a ele a aventura de ler e, algumas vezes, reler, a obra da poetisa Cora Coralina. Comecei pela literatura infantil, que pouco conhecia. Já se foram: Os meninos verdes (linda história sobre a aceitação do diferente), De medos e assombrações (“causos” do interior de arrepiar) e Poema do milho, dedicado a louvar o trabalho do homem e da mulher do campo durante a semeadura e a colheita do milho em terras goianas. 

Andar pelos caminhos da roça faz a gente experimentar cheiros muito distantes da nossa cotidiana vida urbana. Cheiro da manhã nascendo (afinal, pomos o pé no Caminho bem cedo para aliviar o calorão depois do meio-dia), cheiros de animais (vacas, bois e cavalos), cheiros de plantas, frutas e floração. Andar pelo Caminho também faz a gente ouvir o silêncio, os pássaros, o mugido, o roçar da calças e a ponteira do bastão batendo no chão a cada passo.

Além, é claro das conversas animadas dos/as colegas do Grupo que estão à frente ou atrás de você. E, por vezes, os latidos dos “doguinhos” que acompanham os caminhantes pelas trilhas. Uns acabam adotados, outros são levados de volta à sua cidade de origem dentro do ônibus que nos transporta de Brasília (DF) a cada uma das cidades de partida ou de chegada dos trechos de Cora. Não podiam faltar o som das motocicletas a circular com leite e com pessoas entre os povoados, o som dos tratores e o dos poucos carros.

Este final de semana (fevereiro 2023), estive a admirar como é bonito o Passaporte do Peregrino! Já tenho lá meus carimbos, e o último foi de São Benedito, distrito de Itaberaí (GO). Os carimbos são dados aos caminhantes por comerciantes locais. Já recebi o meu em mercearia, restaurante, parque turístico e o último foi na estalagem Pouso Vitória, onde pousei para banho depois de 27 km a pé desde Itaguari. Quando concluir todos os trechos, vou receber um certificado como meus colegas e tantos outros que fizeram o Caminho a pé ou de bike! 

Revitalização com bancos para descanso e imersão na poesia de Cora Coralina são as benfeitorias realizadas no último ano pela ACCC.

Trecho 1 Estrofe Cora Coralina

Ao longo do Caminho – e são longos, entre 16 e 38 km – a gente senta e descansa um pouco lendo estrofes de Cora.

Uma delas, remete a esse ir e vir e o encontro com a poesia.

Irmanadas na poesia

nos encontramos:

Quem vem vindo.

Quem vai indo.

Na roda-vida da vida

girando se esbaldando

no encalço de uma rima

fugidia

De poético, a ruralidade do interior de Goiás está repleta. Logo pela manhã, ao nascer do sol, a alma do caminhante pode se reportar ao bucólico, à poesia pastoril de outros tempos, que valorizava a vida simples do campo em detrimento da vida agitada das cidades que começavam a florescer. A paisagem do Caminho, no entanto, é paradoxal. Na estrada, contemplam-se pequenos proprietários rurais, médios pecuaristas com criação extensiva de gado e as grandes propriedades em que soja e milho estão a perder de vista. No negócio, a vista vê longe um troço de mata virgem e sabe que é a reserva legal obrigatória, o pouco do Cerrado que ainda vive.

Quando caminhamos, passar rente a esses troços de mata é revigorante. A brisa refresca o corpo e diminui a suadeira, a sombra remete à esperança e o desenho não-linear das folhas e das árvores oxigena os olhos e o pulmão, em contraste à paisagem ao longe de um verde de mesmo tom e a saliência de um pivô de irrigação ao meio da plantação.

Ainda não cheguei aos trechos de serra e, por isso, novas aventuras se avizinham no caminhar e na leitura das obras de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida como Cora Coralina!

Cora sempre escreveu, mas só foi publicar seus textos depois dos 70 anos. Por sua obra, foi escolhida para a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e a Academia Goiânia de Letras. Ganhou o Prêmio Juca Pato da União Brasileira dos Escritores e foi agraciada com o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás (UFG).